Uma faceta assustadora da saúde no Brasil foi revelada recentemente: 12 em cada 100 brasileiros vivem em quase metade dos 5.571 municípios brasileiros em que há pouca ou nenhuma assistência ambulatorial ou hospitalar. O resultado disso é um número monstruoso de deslocamentos de pacientes para cidades-referência, onde eles encontram infraestruturas em que demandas mais complexas de saúde podem ser atendidas. Esse fenômeno é conhecido no Brasil como "ambulancioterapia".
Todo esse vaivém de 27,5 milhões de brasileiros, como revela o estudo do Tesouro Nacional com dados do Ministério da Saúde e do IBGE, provocou nada menos que 4 milhões de deslocamentos de pacientes em 2021, número que evidencia um enorme vazio assistencial no país. "Na maioria das vezes, as viagens não ultrapassam as cidades mais próximas, porém, em muitas situações, alcançam os milhares de quilômetros", destacou o Tesouro Nacional no site do estudo.
"O acesso a consultas, exames e procedimentos médicos em um país do tamanho do Brasil é certamente um desafio", diz Adriana Mallet, médica e uma das fundadoras da SAS Smart. "A solução passa por tecnologia, conectividade de qualidade e capacitação profissional, para que essas milhões de viagens possam ser cada vez menos necessárias com a telessaúde".
Como já contamos aqui no Blog da Inovação na Saúde, o deslocamento médio para atendimento é de 72 km. Essas viagens podem chegar a 400 km em regiões mais afastadas. Para cirurgias e procedimentos mais complexos, a média é de 150 km. Mas há pacientes que cruzam o país de uma ponta a outra para conseguir atendimento. Os deslocamentos, como destaca reportagem do g1 sobre o fenômeno, são feitos em grupos de 10 a 20 pessoas em vans disponibilizadas pelas cidades menores.
A origem de tantos deslocamentos está, conforme aponta o levantamento do Tesouro Nacional, na imensa desigualdade entre os municípios: a maior parte das cidades de pequeno porte no país tem gastos em saúde bastante inferiores àquelas de médio e grande porte – justamente as que mais recebem pacientes de outras localidades.
Em entrevista ao g1, Marília Louvison, professora da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), o que preocupa na discussão sobre a "ambulancioterapia" não é apenas o deslocamento em si, mas sim o tamanho desse deslocamento: quantos quilômetros são percorridos em busca dos serviços de saúde do SUS e por que isso acontece. “Se um paciente que precisa fazer hemodiálise 2 a 3 vezes por semana e, para isso, percorre um caminho muito longo, é desumano”, afirmou ao g1 a professora.
A solução óbvia para o problema é tirar os pacientes possíveis das estradas brasileiras. Essa solução passa necessariamente por usar a telessaúde para aquelas consultas e pequenos procedimentos que não precisam ser feitos presencialmente. Além de reduzir o que a professora da USP chama de "desumano", a telessaúde também pode ter efeitos no meio ambiente.
“Em 2020, começamos a mensurar os quilômetros que podíamos reduzir em deslocamentos de pacientes por meio do uso da telessaúde. Esse número foi tão relevante que desenvolvemos a CompenSAS, primeira metodologia que visa converter a emissão "evitada" de gases do efeito estufa em créditos de carbono, como forma de financiar e de incentivar a transformação digital da saúde" – Adriana Mallet, CEO da SAS Smart
Menos médicos
Publicado em 2013, o estudo "Demografia Médica no Brasil", trabalho realizado pela USP com o patrocínio do Conselho Federal de Medicina (CFM), dá uma pista sobre a origem do problema: os serviços públicos de saúde oferecem em média 1,11 médico para cada mil habitantes no país – o número é cerca de metade da razão geral (2,2), que inclui os serviços particulares.
Embora isso não explique a totalidade da falta de estrutura que leva pacientes a procurarem atendimento longe de onde moram, é também um aspecto que pesa: como em outras profissões, os médicos buscam centros urbanos para se estabelecer. Grande parte escolhe 7 capitais, como mostra o estudo: Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre, Recife, Belo Horizonte, Salvador e Curitiba.
O estudo USP/CFM acompanhou mais de 225 mil médicos entre 1980 e 2009, obtendo dados sobre seu local de nascimento e de graduação, por exemplo. Chama a atenção o número de profissionais que se formaram fora do local em que nasceram: 47,6%. Destes, apenas 36,8% voltaram ao município de origem – pouco mais de um quarto ficou na cidade em que estudaram, em geral, cidades maiores com infraestrutura de saúde melhor.
Os médicos atuando no SUS eram pouco mais de 215,6 mil em 2013, o que correspondia, à época, a 55,5% dos profissionais registrados no país. O estudo ainda mostra a desigualdade existente entre diferentes localidades brasileiras. No Pará, a razão média é de 0,5 médico por mil habitantes, o estado com a menor proporção do país, seguido por Maranhão (0,52) e Minas Gerais (0,75). Na outra ponta, estão o Distrito Federal (1,72) e o Rio de Janeiro (1,58).
"A SAS Smart nasceu com o propósito de criar soluções para a falta de acesso à saúde que é gerada por essa desigualdade de distribuição de profissionais", afirma Adriana. "Entendemos que a saúde precisa de inovação em modelos que a tornem acessível a essa população e não apenas em novos produtos que acabam sendo novas soluções para cada vez menos gente que pode acessá-las".
Reflexos nas rodovias
Além de tornar mais sofrido, distante e difícil o atendimento de demandas em saúde, muitas das quais são consideradas simples, a necessidade de deslocamento de pacientes também tem reflexos em uma situação visível nas estradas brasileiras: acidentes envolvendo veículos em que os pacientes viajam são comuns.
Embora não existam estatísticas precisas mostrando o número de vítimas deste tipo de ocorrência, há registros frequentes no noticiário sobre acidentes envolvendo ambulâncias e vans em que pacientes viajam em estradas brasileiras.
"Quem trafega pelas nossas rodovias certamente já notou o número de ambulâncias rodando e é possível que já tenham visto algum acidente envolvendo veículos de emergência ou de transporte de pacientes", aposta Adriana, da SAS Smart. "Milhares de pessoas colocam a vida em risco todos os dias para conseguir um atendimento médico que poderia ser feito pela tela", assevera.
Em janeiro deste ano, um grave acidente com uma van que transportava pacientes tratados na capital do Tocantins, Palmas, deixou 12 mortos, entre eles um bebê de 4 meses (imagem ao lado). O veículo da secretaria de Saúde de Almas (TO) que levava pacientes para exames e consultas médicas na capital colidiu com um caminhão.
Em junho, 10 pessoas ficaram feridas quando o veículo em que estavam saiu da pista e capotou. A van da prefeitura de Maravilha (SC) transportava pacientes para a capital, Florianópolis. Três pessoas morreram e outras 4 ficaram feridas em uma colisão frontal entre um veículo da secretaria de Saúde de Bagé (RS) e outro carro, em junho. Um dos mortos era o motorista da van, de 45 anos. Os 3 pacientes que ele transportava sofreram ferimentos graves. Em maio, um ônibus da prefeitura de Morada Nova (CE) saiu da pista e caiu em uma ribanceira no caminho de volta de Fortaleza. Quinze dos 20 passageiros tiveram ferimentos.
Segundo um levantamento de 2015 do jornal Zero Hora, ao menos 30 pessoas tinham morrido em rodovias federais e estaduais só no Rio Grande do Sul em 6 anos. "O caso mais grave foi em março de 2009, quando 8 pessoas perderam a vida após o micro-ônibus que levava pacientes de Sobradinho para Porto Alegre bater em caminhões (...) em Venâncio Aires", ressaltou o jornal, em referência ao período do levantamento (2019 a 2015).
Além de aumentar a chance de acidentes, os deslocamentos ainda têm efeitos sobre os motoristas dos veículos. O Zero Hora destaca que os condutores consideravam o trabalho cansativo ou estressante. Em média, viajam mais de 300 km, quase diariamente, entre o interior e a capital gaúcha, Porto Alegre. Muitos deixam a cidade de origem de madrugada para chegar ao local de atendimento no horário agendado para os tratamentos ou consultas.
Outro aspecto é o tempo gasto com o transporte dos pacientes. Além da duração da rodagem, os motoristas em geral esperam o fim do tratamento para voltar com os pacientes, o que pode levar todo um dia. Em grandes cidades, não é difícil notar uma quantidade expressiva de veículos de transporte com placas de outros municípios estacionados ao redor de hospitais de referência.
Foto de capa: Mateus Bruxel/Agência RBS
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